Constrói para ti um jardim

Na tradição culta chinesa um intelectual era aquele que se distinguia no cuidado do seu jardim, não apenas aquele que fabricava ideias ou palavras

 
Um dos aspetos mais interessantes deste tempo desencontrado em que vivemos é o regresso à terra. Passámos, como sociedade, por um processo de industrialização acelerada que nos levou para longe da natureza e das suas formas. Hoje vemos uma geração de gente nova a voltar ao campo, a tentar descobrir um outro estilo de vida e uma economia diferentes. Com este regresso à terra, há também um retorno, digamos assim, àquilo que a terra nos pode dar de mais autêntico, vencendo as formas de exploração selvagem da criação: o uso abusivo dos químicos, os vários tipos de produção cega, que se torna perigosamente tóxica. A quantidade de feiras biológicas que se realizam no coração das cidades revela uma outra preocupação com a terra. Mas há muitos outros pequenos sinais. Em muitos centros urbanos, por exemplo, multiplicam-se os jardins verticais, verdadeiras paredes-jardins que preenchem os espaços vazios de alguns edifícios. O que é que existe neste regresso à natureza? Penso que se trata da tomada de consciência de que viver distanciado da natureza implica viver distanciado de si. A poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen tem, no poema chamado ‘O Rei de Ítaca’, essa explicação: “A civilização em que estamos é tão errada que/ Nela o pensamento se desligou da mão// Ulisses rei da Ítaca carpinteirou seu barco/ E gabava-se também de saber conduzir/ Num campo a direito o sulco do arado.” Vivemos divididos, sem inteireza e desconhecendo o que ela seja. Vivemos de meias verdades, de meias palavras, exilados de nós próprios, devorados por ritmos desumanos, por necessidades prefabricadas que não são realmente as nossas. Vivemos fora de nós, incapazes de nos constituirmos como sujeitos da nossa própria história. O mundo que nos rodeia, porém, pode conduzir-nos à sabedoria.
 
De todas as poéticas do mundo, as orientais foram certamente aquelas que mais trabalharam o motivo do jardim. Há um autor do século IV, o chinês Tao Qian, que deixou o seguinte testemunho: “Em jovem não me adaptava à vulgaridade: amava as colinas e os montes. Por engano, depois, deixei-me prender nas malhas do mundo e assim dispersei muitos anos da minha vida. Mas o pássaro aprisionado tem saudade da antiga floresta e o peixe do riacho recorda quanto nadava livre na corrente. Foi quando avistei a sul estes campos incultos. Para preservar a minha simplicidade regressei aos campos. Por longo tempo encerrado numa gaiola pude por fim voltar à minha natureza.” “Voltar à minha natureza” diz-se como o termo ‘fanziram’, no chinês deste século IV. E ‘fanziram’ pode traduzir-se também como “voltar à minha natureza” ou “a mim mesmo”. É curioso que, na tradição culta chinesa, os letrados tinham como uma das suas atividades plantar um jardim e cuidar dele. Um intelectual era aquele que se distinguia no cuidado do seu jardim, não apenas aquele que fabricava ideias ou palavras. Um grande letrado japonês do século VIII, escreveu o seguinte: “Desde que habito aqui, levanto a cabeça e avisto a montanha. Baixando-a, escuto as fontes. Viro-me para o lado e apercebo-me do bambu, das árvores, das nuvens e dos rochedos. De manhã e ao entardecer eles todos têm uma única voz. Instantaneamente o mundo abraça-me e a minha respiração abandona-se como convém, interiormente e externamente. Depois de uma noite o meu corpo acalmou-se; duas noites e o meu coração encontrou paz. Três noites e sinto-me tão bem que perco a consciência de tudo sem saber como isto se produz. O mundo que me rodeia conduz-me à sabedoria.” Creio que a nossa vida fica incompleta se depois de construirmos hortas, casas e templos não tivermos construído um jardim.


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