Filhos que são como estrangeiros

A depressão juvenil é um dos maiores dramas que acontecem nas famílias. Enche a casa de perplexidades e pavores, mancha a relação entre pais e filhos, intoxica todos os que se aproximam para ajudar.
Primeiro dia de chuva de Outono. Horas corridas, reuniões aceleradas, encontros fugazes e conversas atropeladas. Tudo vivido numa vertigem porque a rentrée veio com força e, para cúmulo, chove, há obras por todo o lado na cidade e o trânsito fica imediatamente parado. No meio deste pára-arranca, uma curta visita profissional a um amigo que depois me acompanha pela rua, até ao carro, para termos mais tempo para conversar.
Pergunto sempre pelos seus. Mulher e filhos, mas também por projectos novos e antigos, bem como por amigos comuns. Desta vez a conversa centrou-se em alguém que ambos conhecemos por ser muito novo, mas já ter um histórico grande de depressões e desânimos. A conversa fez-nos parar numa esquina e ali ficámos nesse tempo breve-demorado, em bolha, alheios ao movimento em volta.
– E tem ido às consultas?
– Tem, agora já não falta. Mas ainda ninguém vê muitos resultados.
– Mas está mais animado?
– Parece.
– Difícil, esta realidade da depressão juvenil… a doença não se vê e todos achamos que é uma questão de vontade, mas é precisamente na vontade que a depressão actua. Minando-a, enfraquecendo-a, aniquilando-a.
– Pois, o problema é que nem sempre nos lembramos disso…

Cada um enunciou casos conhecidos para reforçar este ponto da verdade e da vontade, mas também para nos encorajarmos mutuamente a admitir que é extraordinariamente difícil lidar com pessoas deprimidas. Sobretudo quando são muito jovens e estão, como se diz, na primavera da vida. A expressão pode ser popular, mas revela a sabedoria dos que olhando para os jovens vêm neles apenas talentos prontos a florir e a multiplicarem-se. Ou seja, não esperam que rapazes e raparigas tão novos sujeitem os seus talentos a uma lenta asfixia. Muito menos que os enterrem em lugar nenhum.
Esperar que alguém atravesse uma fase de depressão e consiga sair dela sozinho é como esperar que o mar corra para os rios. Contar com a vontade do próprio, confiando que um dia vai acordar restabelecido e pronto para a vida também é como contar com um céu estrelado ao meio dia. Vivemos na ilusão de que está na mão de cada um gerir a sua maior ou menor inclinação à depressão, mas é completamente falso que assim seja. Há factores genéticos, há predisposições, há as circunstâncias específicas de cada um, os contextos de cada qual e, claro, os acontecimentos que marcam a vida. Mais os impactos, os tremendos impactos e traumas que ficam a fazer eco em nós. E, ainda, a incapacidade de pedir ajudas certas, a especialistas nas matérias.
Para um pai ou uma mãe que acordam e adormecem diariamente tendo em casa um filho deprimido, a vida familiar pode revelar-se uma tragédia. A depressão juvenil é um dos maiores dramas que acontecem nas famílias. Enche a casa de perplexidades e pavores, mancha a relação entre pais e filhos, intoxica todos os que tentam aproximar-se para ajudar. Gera dependências e codependências.
Tudo isto se vive numa espécie de arame, num trapézio sem rede, pois estes filhos são imprevisíveis e têm feitios difíceis. Por vezes até muito erosivos. E mais, podem não conseguir adormecer de noite, mas são capazes de ficar a dormir durante horas a fio, sem saírem do quarto e sem chegarem a ver a luz do dia. Pior, não jantam nem almoçam a horas, nunca se sentam à mesa com a família, mas podem ficar de olhar parado em frente da televisão ou emboscados no computador a comer porcarias.
Não se mexem por nada, nem se interessam por coisa alguma, mas podem subitamente despertar dessa letargia se um amigo ou alguém do grupo, da sua tribo, aparece para os levar sabe-se lá para onde.
Passam noites fora de casa, supostamente entre amigos, mas quando voltam (demasiado tarde, muito depois das primeiras horas da manhã) tornam a afundar na mesma apatia. Respondem por monossílabos ou nem chegam a responder. Articulam poucas palavras porque a cabeça lhes pesa e qualquer luz lhes faz impressão. Detestam ter pessoas à sua volta e ignoram todas as perguntas normais, das pessoas habituais. Só respondem – quando respondem! – a gente estranha que não pára lá em casa e apenas se conhece por nomes vagos.
Um filho deprimido é um absoluto desconhecido. Um verdadeiro estrangeiro. Fala outra língua e usa um idioma próprio. Mora num território distante, ao qual nem remotamente se acede. Mascara o que sente e nunca diz o que pensa. Raramente revela o que lhe vai na alma, porque cala mais do que fala. Os pais estão proibidos de atravessar as suas fronteiras e é extraordinariamente difícil derrubar os muros que ergue à sua volta.
Acresce a tudo isto o facto de a depressão ser uma doença invisível, por assim dizer. Não se vê, no sentido de não ter sinais daqueles que se detectam à vista, através de imagens, análises ou outras evidências médicas. Não é um cancro, não é uma perna amputada, não é um alto na cabeça, não é nenhum handicap físico nem os deprimidos andam em cadeiras de rodas ou de muletas. Muito pelo contrário! Muitos deles têm uma aparência de grande normalidade, alguns são atléticos e bonitos, e até conseguem ser efectivos em áreas estratégicas da sua vida. Nos jovens, estes estados depressivos chegam a passar razoavelmente despercebidos a amigos, pares, professores e famílias. Só isso justifica tantos suicídios de ‘jovens tranquilos e simpáticos’ que ninguém suspeitaria estarem a fazer uma travessia do inferno.
E é neste ponto de invisibilidade que nos devemos deter, pois a depressão não vem associada a sinais visíveis e, por isso, pode ser disfarçada durante muito tempo. Tempo demais, diria eu. Os psiquiatras, psicólogos e outros especialistas que acompanham jovens deprimidos são naturalmente capazes de detectar os primeiros sinais, mas nós, os que não somos especialistas e por vezes até temos uma proximidade muito grande com estes jovens, andamos a leste.
Voltando à esquina e à conversa, eu e o meu amigo detivemo-nos precisamente neste ponto. Na certeza de que se o jovem em causa tivesse um diagnóstico de cancro ou outra doença progressiva e incurável, todos nos compadeceríamos dele. E todos agiríamos em conformidade, sendo firmes mas compreensivos, levando-o aos tratamentos e cuidando dele com paciência e bondade. O problema é que a depressão é quase sempre incompreensível e, para muitos, fonte de grande impaciência. De intolerância, atrevo-me a dizer. Não sabemos lidar com deprimidos e ficamos a acusá-los de não se levantarem da cama, de não agirem nem reagirem, esquecendo-nos que a doença é essa mesma: mina a vontade e quebra o ânimo. E se assim é, pedir a um deprimido que acorde e reaja é o mesmo que pedir a um tetraplégico que se levante sozinho da sua cadeira e atravesse a rua pelo seu pé.

Despedimo-nos depois de olharmos para o relógio e vermos as horas, porque cada um tinha onde estar e ambos sabemos como é urgente cumprir horários e cultivar pontualidades. Voltei desta esquina e desta conversa com a certeza de que mesmo não sendo especialista em coisa nenhuma, poderia tentar dar um pouco mais de visibilidade ao que é invisível. Escrevo apenas com esse fim. Escrevo na esperança de que mais pais e mães, mais educadores e professores, mais amigos e irmãos, mais tios e primos, vizinhos e conhecidos, mais pessoas ditas normais (como sempre achamos que somos) se lembrem deste ponto da invisibilidade de uma doença que preserva os ossos e a carne, mas ataca a vontade. Talvez isto nos ajude a ajudar.

Laurinda Alves, in Observador, a 18 de outubro de 2016

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