(IN)CORPO DE DEUS - Homilia Dom Jorge Ortiga - Desafios à Família

1. Experiência Humana
Num tempo em que a espiritualidade típica da New Age invade a nossa sociedade, trazendo consigo novas divindades, a crença fundamentalista na tecnologia e na ciência, novas relações humanas, uma nova visão cosmológica e antropológica do mundo, a obsessão pela economia e a alteração dos princípios morais, faz com que a celebração da solenidade do Corpo e Sangue de Cristo confira ainda mais sentido nos dias de hoje, no intuito de demonstrar à sociedade que o Deus no qual nós acreditamos é, ao contrário do que se possa pensar, um Deus pessoal, vivo e próximo do Homem.


2. Liturgia da Palavra
Nessa linha, o evangelho ensina-nos que “comer o pão descido do céu” é o mesmo que “comer a carne do Filho do Homem”. E “comer a carne do Filho do Homem” significa comer, acolher e assumir interiormente a identidade, o discurso e o estilo de vida da pessoa que nos revelou Deus: Jesus, o Cristo.
Além disso, pela etimologia grega do verbo usado pelo evangelista, compreendemos que Jesus não quer apenas que comamos o pão, mas mais do que isso: que o trinquemos, o trituremos e o mastiguemos, desvelando assim a intensidade e profundidade cristã com que pretende que o façamos.
A eucaristia é, por isso, o sacramento em que se torna visível, de um modo mais explícito, esta união e comunhão entre o Homem e o próprio Deus.[1] Por seu turno, Paulo, no texto evocativo mais antigo referente à Eucaristia, refere na carta aos Coríntios que há um só Deus, revelado num só pão, o que faz de nós todos um só e mesmo corpo.

3. Reflexão Teológica
  Houve um tempo em que se pensava que a Eucaristia era um privilégio de alguns, mas o Papa Francisco desfez todas as dúvidas quando afirma na Evangelii Gaudium: «A Eucaristia, embora constitua a plenitude da vida sacramental, não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos.»[2]
A liturgia transforma assim a nossa fé professada em fé celebrada. A  eucaristia, enquanto acto litúrgico por excelência, tem de ser o centro da nossa vida, reportando-nos depois para uma fé vivida no meio dos outros. Já há muitos séculos atrás Frei Bartolomeu dos Mártires dizia com razão: “A minha alma definha, quando não se levanta e inflama pela recepção da Eucaristia.”

4. Desafios Pastorais
  Com base nesta reflexão, gostaria de deixar hoje exclusivamente dois desafios pastorais. O primeiro diz respeito à qualidade da nossa liturgia. Ao olhar o programa pastoral da Arquidiocese, arriscaria dizer que esta eucaristia do Corpo e Sangue de Cristo é, sem dúvida, o momento central do nosso ano pastoral. Trata-se, dessa forma, de um momento favorável para avaliarmos o modo como preparamos, celebramos, estamos, rezamos, respondemos e cantamos nas nossas celebrações. Durante o ano houve inúmeras formações que o Departamento de Liturgia proporcionou a todos os agentes litúrgicos. Mas agora falta a vossa parte!
É hora de uma verdadeira revisão sobre o que ficará deste ano pastoral. Não peço que façais celebrações pontifícias semanalmente, apenas que coloqueis ao serviço da celebração as vossas qualidades. Não quero que reduzais a vossa espiritualidade somente à eucaristia, mas que ela tenha a devida importância na vossa vida. Não pretendo que a eucaristia seja o único foco da acção pastoral, mas que seja o princípio, a orientação e o horizonte das vossas actividades.
Um segundo desafio reporta a um pecado que cometemos muitas vezes na nossa vida: chamar-lhe-ia o pecado do hotel. Ou seja, quando fazemos da nossa família apenas um hotel onde vamos apenas comer, dormir e ver televisão, em vez de fazer da nossa família um autêntico lar onde falamos, rezamos, debatemos, brincamos e sorrimos em conjunto.
Mas pior do que isso, é quando desperdiçamos aquele almoço de Domingo em família (ou de outra ocasião semanal), para fazer desse momento uma refeição verdadeiramente eucarística. Por outras palavras, uma refeição na qual nos alimentamos, não só dos alimentos que estão sobre a mesa, mas também nos alimentamos uns dos outros, através de uma relação mais viva e evidente que se expressa.
E porquê? Porque quando nos sentamos à mesa, nós ficamos todos iguais, ao mesmo nível, no mesmo patamar, e ficamos todos habilitamos para partilhar aquilo que somos. Na verdade, creio que se este momento familiar for melhor aproveitado, podemos evitar muitas situações desagradáveis e negativas nas nossas famílias.
Não basta morar debaixo do mesmo tecto. Se “quando dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles”, implica não desperdiçar o dom da presença de Cristo e fazer sentir nos outros esta nossa alegria.

5. Conclusão
Para terminar, curiosas são as palavras do Pe. Abílio Correia que, após regressar do serviço na capelania hospitalar à paróquia de S. Mamede de Este em 1938, disse: “Por causa do Santíssimo Sacramento sacrifiquei tudo e voltei, porque foi aqui nesta pobre freguesia, e pobre igreja e junto ao seu pobre sacrário, que eu recebi as maiores graças temporais e espirituais da minha já longa vida”[3].
Diante deste testemunho, reconhecemos que “não podemos prescindir da Eucaristia, pois ela tem um antes e um depois, isto é, uma vida de encontros ou de desencontros, de atenção aos outros ou de fechar os olhos dando assim alento à denominada ‘globalização da indiferença’”.[4]
Por isso, encaremos a vida nesta perspectiva litúrgica e façamos da nossa família um autêntico lar eucarístico!


+ Jorge Ortiga, A.P., Sé Catedral de Braga, 22 de junho de 2014.

Comentários